Quarentena chegou e a louça aumentou. Não só louça, mas a sujeira da casa, a necessidade de reorganizar a rotina e a educação dos filhos, cozinhar e infinitas possibilidades que possam surgir na diversidade de cada família brasileira. Estou falando das “atividades não remuneradas”, um termo ainda pouco discutido no Brasil, pois sempre que falamos de atividades não remuneradas, automaticamente nos lembramos do trabalho que é realizado para instituições de caridade
A verdade é que o tempo que você dedica para cuidar da sua casa e com sua família é uma atividade não remunerada, gastando parte da sua energia que poderia ser gasta com atividades remuneradas, autocuidado e lazer. Se todo mundo fizesse o trabalho que remete a si mesmo, não estaríamos falando deste assunto aqui. O problema é que a maior parte do trabalho não remunerado é realizado por mulheres.
“São 12,5 bilhões de horas de trabalho não remunerado executado por mulheres todos os dias. O montante deste trabalho foi mensurado em 10,8 trilhões de dólares pela OXFAM, 2019¹”
Um trabalho que sempre foi subestimado, considerado sem valor para a sociedade, já que a mulher que faz trabalho não remunerado e dedica-se a família, sempre foi tratada como inferior. E não estamos falando apenas de mulheres que vivem com 5 dólares por dia na África, estamos falando também de você, mulher, que está lendo este artigo e já passou por momentos de desigualdade ao realizar as atividades não remuneradas em casa.
Digo com essa certeza, pois a Islândia que possui o maior índice de igualdade de gênero mundo, ainda não atingiu a igualdade neste requisito. O Brasil está bem mais longe no ranking.
Está nas pequenas atividades, nas pequenas ações de cada dia, basta termos consciência. O que muda de uma mulher para outra são as intensidades, uma mulher branca de classe média tem a possibilidade de terceirizar alguém para realizar este trabalho para ela, por mais que ela ainda precise executar nos finais de semana e feriados. Enquanto uma mulher negra, da periferia, não tem esse luxo. Infelizmente, na maioria dos casos, é esta mulher negra quem trabalha como empregada doméstica para os outros.
Uma coisa que me chama atenção é o nome. Empregada doméstica. Já reparou que o termo está sempre no feminino? Já ouviu o termo “empregado doméstico”? Até soa estranho, pois é pouquíssimo citado, afinal, os homens são os motoristas particulares, os jardineiros, os mordomos, cozinheiros, os que consertam as coisas, mas limpar a casa? Ah, isso é coisa de mulher. Homens que tentam ser “empregados domésticos” sofrem muito com este estereótipo, sendo questionados pela profissão e pela sua “masculinidade”.
Interessante entender como esse tema permeia sobre mulheres e seus direitos, mas também sobre a posição dos homens e a imagem que a sociedade cobra deles. E isto acontece em todos os lares brasileiros, seja na favela, seja na mansão. E para entender o porquê, basta retomarmos ao nosso passado, entender e revisar nossa história para chegarmos na causa raiz.
Gostaria de compartilhar uma história baseada em fatos reais da Fernanda e do Murilo, que são irmãos.
Desde criança, a Fernanda é educada a cuidar das bonecas, porque no futuro serão seus filhos. Ganha presentes de cozinha, de limpeza e organização da casa. Foi educada para ser afável, amorosa, saber perdoar e aceitar. Videogames, computador, armas? Isto ficou para o Murilo. Ele podia falar palavrão, gritar, ser grosso, para se tornar o “macho” e proteger o lar. Quando adolescente, foi estimulado a gostar de futebol, álcool e a falar de mulheres, ah se não fizesse alguma dessas coisas, era chamado de “viadinho”. Enquanto Fernanda, foi orientada a ajudar na casa, em ser responsável, romântica e dedicar-se a um homem, porque mulher que fica com vários é “galinha”, mulher que bebe álcool, “não presta”. Engraçado como tudo isto aconteceu sob o mesmo teto. A dicotomia que acontece ao nascer, do azul x rosa.
Murilo foi morar com mais 2 amigos e quando aprendeu a fazer arroz pela primeira vez na vida aos 20 anos, foi idolatrado pela mãe dizendo: “meu filho é um homem de ouro, além de ser bom, ajuda em casa”. Fernanda, estudava e trabalhava como seu irmão, mas ainda era questionada por algumas exigências: “minha filha, você andou engordando? ” “Quando você vai arrumar um homem e me dar netos? ”.
Murilo fez engenharia na USP, virou superintendente de um banco renomado. Trabalha 14 horas por dia de forma remunerada². Dorme 6 horas. Lê e estuda por 1 hora. Nas outras 3 horas tem um tempo para ele e para a família. Isto em 1 dia normal na rotina. Decolou na carreira com a ajuda da sua esposa, que é nutricionista, mas quando tiveram o primeiro filho, ela decidiu reduzir sua jornada de trabalho. A esposa do Murilo, trabalha 5 horas remuneradas, dedica 12 horas para os filhos, marido e a casa, estuda e lê por 2 horas e dorme 5 horas por dia. No mesmo dia normal de rotina do marido. A esposa de Murilo, é inferiorizada pelo salário que ganha, por trabalhar em casa e exigem perfeccionismo dela, de como cuida da casa e dos filhos. Já Murilo, é ovacionado pelo trabalho que exerce e por lavar a louça nos finais de semana.
Uma família da classe alta e bem-sucedida que de longe, parece ser sem defeitos pela sociedade patriarcal que estamos acostumados. Mas ao meu ver, algo bem injusto. Murilo pode ser um homem bom, trabalhador, mas a conquista de ter a família e o emprego dos seus sonhos, é de muito mérito da sua mulher, que se dedicou horas de trabalho não remunerados para suprir a ausência de pai, lavar e passar as camisas sociais e para que ele tivesse tempo de fazer o curso de executivos em Harvard sem ser incomodado por uma fralda suja.
“Para mim, essa mulher merece um prêmio, uma homenagem por ter sacrificado tantas horas da sua vida pelos outros”
Lembrem-se que estou falando de uma mulher privilegiada. Imagina as mulheres que possuem seus direitos vetados pelo estado, por sua orientação sexual, pela família ou por sua posição social. No Brasil, vale citar alguns marcos conquistados, mas ainda incipientes: Voto feminino (1932) — Estatuto da Mulher Casada (1962) — Lei do Divórcio (1977) — Lei Maria da Penha (2006) — PEC das Domésticas (2015) — Lei do Feminicídio (2015); as datas mostram o quanto ainda é recente este direitos.
E o que aconteceu com a Fernanda, irmã de Murilo?
Fernanda priorizou os estudos e fez psicologia. É PHD e professora universitária da Unesp. Sempre lutou pelos direitos das mulheres. Casou, teve uma filha, um relacionamento abusivo e divorciou-se. Sua mãe foi diagnosticada com Alzheimer e passou a morar com ela. Para ajudá-la, tem uma empregada doméstica que a ajuda com os afazeres domésticos e a cuidar da sua mãe. A rotina diária da Fernanda consiste em 9 horas na Universidade². E gasta cerca de 2 horas para preparação de aulas e atualização de conhecimento. Fica 6 horas cuidando da sua mãe. Faz 1 hora de exercícios físicos por dia. E dorme 6 horas. Murilo passa 1 vez por semana para almoçar com a mãe. Fernanda é uma supermulher, mas ainda é questionada por ser feminista, por ter se divorciado e não estar vivendo a vida. Fernanda está com sobrecarga emocional.
Há tantos fatores aqui, mas iremos focar no trabalho não remunerado.
Fernanda faz 6 horas de trabalho não remunerado diariamente para cuidar de sua mãe. Trabalho que poderia ter sido dividido com o Murilo, porém como possui um emprego de status e não pode abandoná-lo ou reduzir jornada para cuidar da sua mãe, fez a proposta de colocá-la em um asilo, proposta rejeitada por Fernanda, que considerou injusto com a mãe, que sacrificou a vida toda pelos filhos.
Todo o esforço de Murilo foi dedicado 100% em seu sucesso. Apesar de Fernanda de entender sobre desigualdade de gênero desde a adolescência, trabalhou em dobro para conseguir estudar, para ter uma profissão e cuidar da família. Ela virou a famosa mulher maravilha. Ela não gosta deste status e está cansada de sacrificar o seu tempo livre com trabalho não remunerado e não consegue ter tempo para si mesma ou visitar sua filha que mora em outra cidade.
A história de Murilo não é melhor do que a de Fernanda, nem vice e versa. A ideia não é julgar as escolhas de cada um e sim entender sob a ótica do trabalho não remunerado, as influências e pressões que a sociedade impõe para o papel do homem e da mulher.
Todo mundo tem o direito de escolher e viver a vida como deseja, mas que essa escolha seja consciente, justa e em benefício mútuo a todos e todas. Pelo menos, é isto que eu acredito.
Mesmo conquistando muitos direitos, muitas mulheres ainda não estão conseguindo a igualdade, elas estão acumulando atividades. Atividades que alguém não está exercendo.
Afinal, se todas as pessoas fossem educadas a limpar e arrumar o espaço que utilizam, a serem empáticas e responsáveis por suas ações e consequências, eu acredito que as atividades não remuneradas seriam mais valorizadas e teríamos um mundo mais igualitário.
Que tal aproveitarmos essa quarentena e fazermos uma reflexão sobre o trabalho não remunerado que permeia a nossa volta?
¹Cálculo realizado pela média do valor hora do salário mínimo.
²Está incluso o tempo de deslocamento até o trabalho e horas com alimentação.
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